Zacarias
13.1-9 - A Purificação do Povo de Deus
O capítulo anterior termina com a descrição ímpar de um
lamento nacional entre os israelitas, atingindo cada faixa etária, gênero e
classe social. A razão desse pranto geral e genuíno foi a consciência da
rejeição do Messias, resultando em uma conversão nacional do povo que, no
passado, foi qualificado como tendo uma “dura cerviz” (Êx 33.3,5,9). Contudo,
quando o arrependimento e a fé do pecador se encontram com a graça e o amor do
Senhor, o resultado é maravilhoso e, nesse caso, é anunciado no capítulo 13de Zacarias, a saber, uma
grande restauração e purificação do remanescente fiel.
Assim, o escritor prevê que a fé de Israel
terá como contraparte a ação purificadora de Deus (v.1): “Naquele dia, haverá uma fonte de água aberta para a casa
de Davi e para os moradores de Jerusalém a fim de lavar pecados e impurezas”.
A Bíblia fala
sobre rios que correrão na terra seca quando Jesus reinar sobre seu povo (Is 35.6; 41.18). O próprio
Zacarias fala de águas que correrão de Jerusalém para Leste e para Oeste depois
do retorno do rei messiânico (Zc
14.8). Entretanto, o que ele parece ter em mente nesse texto vai
além de uma simples corrente de água, pois seu efeito não é apenas refrescar os
sedentos, ou suprir plantações e rebanhos, mas também lavar os pecados das
pessoas. Assim, essa menção figurada parece ser extraída do uso de água na
purificação dos levitas em sua consagração (Nm
8.7) e no preparo da água misturada com as cinzas de uma novilha
vermelha usada na purificação e remoção das impurezas do povo da aliança (Nm 19.9). Assim,
ela se une a outras figuras que se referem ao perdão de pecados como um ato de
lavagem com água (Sl 51.2,7;
Is 1.16-18). De fato, nessa ocasião se cumprirá uma das profecias
mais esperadas por Israel no sentido de ser restaurado diante do Senhor, na
qual o próprio Deus promete: “Aspergirei água pura sobre vós, e ficareis
purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos
purificarei” (Ez 36.25).
O resultado prático da purificação que o
Senhor promoverá no meio de Israel é que, além do perdão, haverá o abandono da
rebeldia e de todos os seus veículos (v.2a): “Naquele dia — declara o Senhor —, eu
eliminarei o nome dos ídolos da terra”. De um modo
surpreendente, a história de Israel no Antigo
Testamento é marcada pelo abandono do seu Deus e pelo apego a
todo tipo de religiosidade pagã de seus vizinhos. Atualmente, o abandono do
Senhor se dá por outras formas de idolatria que tomam seu lugar no coração das
pessoas, mas o problema geral permanece. A promessa divina é, mediante a
conversão do povo, promover um completo abandono de toda crença, doutrina,
valor e apego que se interponha entre Deus e o seu povo. O resultado será a
completa rejeição de qualquer veículo de rebeldia que antes desviava as pessoas
do seu redentor (v.2b): “E não haverá mais lembrança deles,
nem tampouco dos profetas e dos espíritos imundos”. Nesse
ponto, são inseridos dois outros fatores que agem no sentido de impedir que as
pessoas creiam no salvador e lhe entreguem suas vidas: os “profetas” e os
“espíritos imundos”. Apesar de o texto mencionar apenas “profetas”, o contexto
geral deixa claro que o escritor tem em mente a figura do falso profeta e dos
“espíritos imundos” diabólicos que agem por meio deles. Com a ação divina,
esses inimigos da verdade também silenciarão seus enganos e engodos.
A verdade é que a existência de Israel também
foi marcada pela ação dos falsos profetas, os quais foram influentes e
obtiveram êxito em enganar o povo e desviá-los dos retos caminhos de Deus (Is 9.15,16; Jr 14.14-16; 23.13-16;
28.15-17; 29.21,32; Ez 13.16,22; Mq 3.5-7,11). Por isso, Zacarias
assegura ao remanescente fiel que isso não tornará a ter lugar no meio do povo
de Deus, não apenas por causa da justa liderança do Messias, mas também pela
fidelidade do próprio povo remanescente (v.3): “Se alguém ainda profetizar, seu pai e
sua mãe que o geraram, dirão a ele: Você não viverá, pois disse mentiras em
nome do Senhor. Assim, seu pai e sua mãe que o geraram o traspassarão quando
ele profetizar”. A fidelidade do povo purificado pelo perdão
divino será tamanha que nem mesmo as ligações sanguíneas serão mais fortes que
os laços da fé e do amor com o redentor. Desse modo, diferente de hoje, quando
os pais ficam do lado de seus filhos, inclusive quando estão errados, os
próprios progenitores de um aspirante a profeta do engano serão seus
acusadores, pois ninguém em Israel aceitará conviver com o erro e com a mentira
novamente, preferindo a verdade e a honra do seu rei. Isso não significa que os
pais não terão amor por seus filhos ou que serão radicais ao ponto de desprezar
a vida dos rebentos, mas sim que eles serão fiéis às ordens de Deus de tratar
segundo a orientação divina aquele que diz “mentiras em nome do Senhor” (Dt 13.1-5).
Outro impacto que a purificação do povo de
Deus terá sobre as pessoas é que os próprios falsos profetas se envergonharão
da sua atividade enganosa (v.4a): “Naquele dia, cada profeta se
envergonhará da sua visão ao profetizar”. O texto hebraico
não deixa claro o tempo da atividade que é motivo da vergonha desses homens.Pode
ser que ainda haja quem queira agir como um falso profeta — a Bíbliaprevê um aumento de
falsos profetas durante esse período (Mt
24.23,24) —, sem, contudo, encontrar espaço para fazê-lo livremente
no meio do Israel convertido, ou mesmo para se vangloriar disso. Ou pode ser
que o texto se refira à atividade passada de homens que foram falsos profetas e
que agora, mediante o arrependimento, a fé e a purificação, envergonham-se do
que fizeram no passado. Apesar de essa última possibilidade ser uma opção
bastante atraente, os versículos 3 e 6 favorecem a
primeira opção.
Como consequência natural disso, tal
atividade será suprimida (v.4b): “E não usará mais roupa de pele de
animais a fim de enganar”. Todos os artifícios utilizados pelos
promotores de mentiras sobre Deus e sua palavra — tanto no passado como no
presente — serão abandonados e não farão mais vítimas entre os seguidores do
Senhor. Em vez disso, tais homens assumirão seu lugar devido, sem desejar ser
mais do que são, nem clamar para si prerrogativas que pertencem ao Messias e
que só podem ser concedidas por Deus (v.5): “Mas cada um deles dirá: ‘Eu não sou
profeta. Sou um trabalhador da terra, pois lido com a terra desde a minha
juventude’”. A tradução desse texto é bem difícil e
controversa, mas seu sentido geral é bem claro. O
desejo que tais homens têm de se apresentar e atuar como profetas que anunciam
uma mensagem própria e independente, não atrelada à revelação divina de
verdade, será suprimido por temor e por vergonha.
A razão para tal temor é reafirmada no
versículo seguinte, que diz (v.6): “E quando alguém lhe perguntar: ‘Que
ferimentos são esses em suas mãos?’, então ele responderá: ‘Fui ferido na casa
dos que me são queridos’”. Isso significa que nem as pessoas
mais próximas dos enganadores os apoiarão, nem aceitarão sua atividade
contrária ao ensino bíblico. O acréscimo à figura geral feito por esse texto
está no fato de os ferimentos notados no corpo dos falsos profetas da época
serem infligidos pelos “que me são queridos”, uma menção que pode apontar para
seus próprios pais — conforme foi predito no v.3 —, mas que também pode englobar os
amigos do profeta mentiroso, completando o quadro da total rejeição de falsas
profecias entre o povo santo e restaurado.
Dito isso, o texto apresenta uma mudança em
sua estrutura e traz uma ordem divina a uma espada que é personificada em meio
à poesia profética (v.7): “Ó espada, desperta contra o meu
pastor, aquele que é meu companheiro — declara o Senhor dos exércitos. Fere o
pastor e o rebanho se dispersará. Mas eu voltarei a minha mão para os pequenos”. O contexto
imediato de Zacarias sugere que
os pastores infiéis de Israel — seus líderes
iníquos — seriam punidos pelo Senhor e que, como consequência
disso, osseus rebanhos — o Israel desobediente — seriam
espalhados (cf. Zc11.6,8,9,16). Contudo,
o Novo Testamento utiliza
este texto para falar sobre a dispersão dos discípulosdepois
da crucificação de Jesus: “Então, Jesus lhes disse: Esta noite, todos
vós vos escandalizareis comigo; porque está escrito: Ferirei o pastor, e as
ovelhas do rebanho ficarão dispersas” (Mt
26.31). Duas indicações no texto favorecem a interpretação
messiânica do versículo 7.
A primeira é o fato de o pastor ferido, diferente do que se esperaria no caso
de se tratar de um líder infiel, ser chamado de “meu pastor” e de “aquele que é
meu companheiro”. Essas expressões apontam para uma profunda e intensa comunhão
entre o Senhor e seu pastor. A segunda indicação é o caráter altamente
messiânico e escatológico do capítulo como um todo. Não se está tratando aqui
dos pecados do passado, mas da restauração e purificação do futuro, além da
fidelidade do povo diante da sua redenção. Desse modo, parece que Zacarias,
depois de falar dos efeitos da purificação, expõe, nos vv.7-9, o meio utilizado
por Deus para promover a restauração do seu povo. Ela só é possível mediante o
ferimento fatal do pastor divino, o Deus encarnado na pessoa de Jesus Cristo.
Em resumo, o capítulo traça uma distinção entre o resultado das atuações dos
falsos profetas e do supremo e verdadeiro Profeta do Senhor.
Algo que pode trazer alguma confusão à figura
é o fato de a ordem de Deus para se ferir seu pastor ser dada a uma “espada”.
Não foi com uma espada que Jesus foi morto e a lança que o perfurou apenas o
feriu quando ele já estava morto. Entretanto, a espada é uma das metáforas para
o juízo de Deus, além de ser um frequente instrumento utilizado por ele para
punir uma nação (Êx 5.3,21;
22.22-24; Lv 26.25,33; 2Sm 12.9; Is 27.1), de modo que se entende
que tal pastor seria o alvo do juízo divino em lugar daqueles a quem ele salva.
Em decorrência da morte do seu pastor divino, Israel também sofreu o juízo
previsto na lei mosaica e foi espalhado pela Terra (cf. Dt 28.64-68). Entretanto,
essa disciplina não representa uma rejeição definitiva (Rm 11.1-4), especialmente
porque Deus continua a separar para si e santificar um pequeno rebanho
israelita (Rm 11.5),
de modo que Zacarias também anuncia que o Senhor voltaria sua mão para os
“pequenos”. O termo “pequenos” aqui utilizado não tem o sentido de tamanho, mas
aponta para pessoas insignificantes e desprezadas, sem força para assumir as
rédeas do seu destino sozinhas. São pessoas assim que o Senhor socorreria com
sua mão graciosa e amorosa, preservando para si um pequeno remanescente até que
viesse o tempo da restauração de todo o povo.
Se a mão do Senhor preservaria uma parte do
seu povo, o restante sofreria uma dura punição, o que tem ocorrido ao longo de
toda a história e o que também acontecerá de modo dramático nos dias da Grande
Tribulação (v.8): “E acontecerá em toda a terra —
declara o Senhor — que dois terços serão aniquilados e morrerão. Mas um terço
restará nela”. É difícil dizer se aqui o termo “terra” deve ser
escrito com letra minúscula — referindo-se à terra da promessa, o território de
Israel — ou com letra maiúscula — referindo-se a todo o planeta. Apesar de tais
números encontrarem semelhanças no relato da tribulação mundial descrita no
livro de Apocalipse,
o contexto imediato parece favorecer a ideia de um território, a terra de
Israel, em que o povo desprezado será alvo da graça renovada de Deus. Contudo,
antes de ser agraciado pela libertação divina, Israel será reduzido a apenas um
terço da sua população local nos dias daquela tribulação, seja pela perseguição
do anticristo e seus exércitos, ou pelas ações de juízo vindas do próprio Deus.
Tal destruição cairá sobre os israelitas endurecidos em seus pecados, assim
como fatalmente recairá sobre a falsa igreja ao redor do mundo,sendo
este o apropriado e predito juízo de Deus aos seguidores hipócritas do seu
nome.
Se dois terços dos judeus serão julgados nesse
período, o remanescente será fortalecido e purificado (v.9a): “Farei o terço restante passar pelo
fogo. Eu o purificarei como se purifica a prata e o aquilatarei como se
aquilata o ouro”. É certo que a figura do fogo é frequentemente
utilizada nas Escrituraspara
se referir ao juízo de Deus (Nm
11.1; Dt 32.22; Sl 78.21; Is 30.33). Mas nesse caso, o escritor
lança mão dessa figura para se referir à purificação, tomando como base a
conhecida atividade dos ourives de purificar e refinar metais preciosos por
meio do fogo. Trata-se de uma comparação muito vívida da ação de Deus que, por
meio de provações que recaem sobre seus servos em conjunto com seu socorro,
torna-os mais puros. Na verdade, situações assim são propícias para que o homem
reveja seus valores e suas atitudes, desprezando o que é passageiro e sem valor
e se apegando ao que é eterno e valioso. É a esse tipo de ação que o salmista
se refere ao dizer: “Pois tu, ó Deus, nos provaste; acrisolaste-nos como se
acrisola a prata. Tu nos deixaste cair na armadilha; oprimiste as nossas
costas; fizeste que os homens cavalgassem sobre a nossa cabeça; passamos pelo
fogo e pela água; porém, afinal, nos trouxeste para um lugar espaçoso” (Sl 66.10-12).
O resultado dessa purificação se verá em um
relacionamento renovado entre Deus e seu povo remanescente (v.9b): “Ele chamará o meu nome e eu lhe
responderei, dizendo: ‘Você é o meu povo’. Então, ele dirá: ‘O Senhor é o meu
Deus’”. A ação de chamar pelo nome do Senhor na Bíblia vai além de
uma simples supertição ou de uma busca por socorro apenas em momentos de
aflição. Chamar ou invocar seu “nome” é uma evidência da fé e da conversão
daquele que clama por ele. Isso quer dizer que, mediante a purificação de
Israel, o Senhor voltará a dizer com propriedade que “você é meu povo”,
enquanto os israelitas, agora convertidos e restaurados, responderão com toda
sinceridade de coração que “o Senhor é o meu Deus”, cumprindo,
com isso, a predição de outros profetas, como Oseias: “Semearei Israel para mim
na terra e compadecer-me-ei da Desfavorecida; e a Não-Meu-Povo direi: Tu és o
meu povo! Ele dirá: Tu és o meu Deus!” (Os
2.23).
A dinâmica exposta nos dois últimos
versículos sugere que o livramento do remanescente da morte é seguido por seu
arrependimento e conversão, e não o contrário. A pergunta que devemos nos
fazer, como igreja do Senhor, é se é realmente preciso que nós também passemos
por situações que nos provam a fim de sairmos delas arrependidos e purificados
de pecados e de rebeldias. Toda a Escritura nos
serve de exemplo do que acontece àqueles que resistem ao comando e ao amor de
Deus, além de evidenciar o custo e as vantagens de andar em comunhão com ele.
Assim, só é preciso decidirmos se queremos aprender tal obediência do modo
fácil ou do modo difícil.